domingo, 25 de setembro de 2011

Coração a Coração

Enfim aqui estou de pé
Passei por ali
Alguém passa por lá agora
Como eu
Sem saber onde vai
Eu tremia
Ao fundo do quarto a parede era negra
Ele tremia também
Como pude eu transpor o limiar dessa porta
Poder-se-ia gritar
Ninguém ouve
Poder-se-ia chorar
Ninguém entende
Encontrei a tua sombra na obscuridade
Era mais doce do que tu
Antigamente
Estava triste a um canto
A morte trouxe-te essa tranquilidade
Mas tu falas ainda
Queria abandonar-te
Se entrasse ao menos um pouco de ar
Se o exterior nos deixasse ainda ver claro
Sufoca-se
O tecto pesa-me na cabeça e empurra-me
Onde vou eu meter-me para onde partir
Não tenho espaço que chegue para morrer
Onde vão os passo que se afastam e que escuto
Longe muito longe
Estamos sós a minha sombra e eu
A noite cai.

Pierre Reverdy , trad. Eugénio de Andrade

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Não a centelha mas o fogo

Lágrimas dos olhos, como centelhas de sílex,
como uma palavra justa, arrancar para que serve?
Nada há de especial. A palavra é como fogo,
e o coração do homem não vive de soluços.
Não é absolutamente isso que me atormenta.
Mas levantarmo-nos de madrugada, à chegada do dia,
e dizer a quem vai à frente:
- Felicidade! –
Dar-lhes uma canção, com toda a alegria,
que proteja como uma autêntica armadura,
das palavras que soam vãs e falsas.
Queremos do homem não a centelha mas o fogo.

Margarita Aliger, trad. Manuel de Seabra

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Pedras no caminho

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo...

(Fernando Pessoa)

domingo, 11 de setembro de 2011

A primeira folha de Outono

Mudei de estação: o Outono ficou para trás e as minhas malas.
Agora o céu é duvidoso, como uma mentira inábil.
Na primeira taberna terei de esquecer
A carta melancólica que me tirou o sono.
Ocioso, arrasto-me pela rua, entre escritórios.
As andorinhas partiram e as máquinas de escrever ficaram.
No horizonte há uma grande trombeta de fumo.
Foi há pouco inventado um avião tão pequeno como uma borboleta.
Bravo! É um bom sinal.
A primeira folha de Outono cai no meu chapéu.

Rade Drainac, trad. José Alberto Oliveira

Este será meu cumprimento

Acabaram meus cigarros
dinheiro tenho pouco
nem uma pessoa influente de poder conheço
não levarei ninguém a qualquer promoção
portanto, não leia este verso
este poema como um meio,
por ele – que sou eu –
não chegará a nenhum futuro brilhante
nem a ocupar um cargo de bom salário
ou daqueles de excelentes aparências.
não tenho nem como trocar favores
não tenho nada que lhe possa interessar
se for por isso nem mesmo um minuto
vale perder comigo.
não precisa de discrição,
afasta-se rápido
finja em qualquer lugar que passo despercebido.
muitos conhecidos pensam em me querer
- no mínimo do que tenho.
mas não tenho nada, nem o mínimo
nem mesmo um verso rimado
não tenho o que oferecer
pode pensar que me ver
é avistar um rosto de dia de semana
um rosto de olhar cansado o trajeto de uma terça-feira
sim, sou um dia de semana arrastado
sem uma ninharia.
melhor, então, é me deixar jogado num canto
prometo que a partir de hoje
logo que alguém falar comigo
antes de todas as coisas falarei assim direto
não tenho nada – será meu cumprimento.

Jefferson Bessa

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Recobrar

Recobro a razão aos tantos anos
deixo de lado o esbulho
trabalhoso dos horários
e me solto em meses
antes naufragados.
Retorno ao horizonte
observável das promessas.
Abdico do direito
de ser a sociedade
concentrada em gestos.
Palmilho espaços descompassados
e me aproprio do caminho.
Devolvo cada pedra ao desenho anterior.


Pedro Du Bois

Vislumbre

Os poemas que escrevas,
ainda que muitos, são
um só, inacabável,
interceptado um dia:
sufocante abertura
por onde irás descendo
a um poço, uma vertigem,
com uma única saída
que, enfim, vislumbrarás
quando já não tiveres olhos.

José Bento

Lado certo da noite

Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
é quando se esgotam as palavras e os silêncios
e a minha mão procura a tua que a recebe
e a noite se unifica e todos os rios secam
menos um por onde navegamos
para abolir a noite.

Carlos Alberto Machado

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Responder

A resposta
ao impulso
gera
nova pergunta
e a ação descabida
do movimento: olho o nada
onde me vejo
estático
habito o mínimo
necessário à vida:
a morte me desconhece.

Pedro Du Bois

Ainda

Amei. É incompreensível como o tremor das árvores.
Agora estou extraviado na luz porém sei que amei.
Eu vivia num ser e seu sangue deslizava pelas minhas veias e
a música me envolvia e eu mesmo era música.
Agora,
quem está cego nos meus olhos?
Umas mãos passavam sobre meu rosto e envelheciam docemente.
Que foi existir entre cordas e espíritos?
Quem fui nos braços da minha mãe, quem fui no meu próprio coração?
É estranho:
somente aprendi a desconhecer e esquecer.
É estranho:
agora, o amor
habita no esquecimento.


Antonio Gamoneda, trad. António Cícero

Oferenda

Eu falo da profundidade da noite,
da escuridão abissal.
Se vieres a minha casa, amor,
traz-me luz.
E uma janela para que eu possa ver
a felicidade daquela rua repleta.

Forugh Farrojzad

Liberdade

A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
como os caminhos soltos pela terra,
como os pássaros livres pelos céus.
Ela é o sol dos caminhos ! Ela é o ar
que os enche os pulmões, é o movimento,
traz num corpo irrequieto como o mar
uma alma errante e boêmia como o vento.
Minha crença, meu Deus, minha bandeira,
razão mesma de ser do meu destino,
há de ser a palavra derradeira
que há de aflorar-me aos lábios como um hino.
Liberdade: Alavanca de montanhas!
Aureolada de louros ou de espinhos
há de cingir-me a fronte nas campanhas,
há de ferir-me os pés pelos caminhos.
Sinto-a viva em meu sangue palpitando
seja utopia ou seja ideal, - que importa?
Quero viver por esse ideal lutando,
quero morrer se essa utopia é morta!

J. G. de Araújo Jorge