domingo, 31 de julho de 2011

Aprendizagem

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até à noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

Ana Akhmatova, trad. Lauro Machado Coelho

sábado, 30 de julho de 2011

Tocata e Fuga

É tudo aquilo que só existe no ar,
0 que de nós, além de nós, se expande.
É a vertigem para o alto, igual à grande
Tocata e fuga em ré menor de Bach.
É o delírio de um bêbedo num bar
É um não sair do chão por mais que se ande
Tudo que em mim, somente em mim existe,
Me transporta, me absorve, me suspende,
Me faz sorrir embora eu esteja triste,
Triste naquele universal sentido
Que a música interpreta e se compreende
Sem que em palavras seja traduzido.

Dante Milano

Oferenda Oriental

Secas, bailam folhas sobre a relva e
o lençol tranquilo da geada
é uma canção do outono.
Integral, a noite:
no vento
no frio
no luar pacificado.

Aires Montenegro

Alice

É do lado de cá do espelho
que corremos perigo.
Do lado de lá
tudo tem solução:
Alice espera por nós,
Alice dá-nos a mão.

Yvette Centeno

terça-feira, 26 de julho de 2011

Homens que São como Lugares Mal Situados

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
Ilumino-a
Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em exame
Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome
Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela
E ilumino-a

Daniel Faria

Acerca de um perfil

Sente-se na minha frente.
Isso, um bocadinho de lado,
é melhor assim.
O perfil da boca fala melhor que os olhos.

Os olhos são muito sabidos,
olham e sabem-se olhados,
conhecem a arte de fingir.

A fissura dos lábios é de nervo rijo,
ri ou chora quando precisa,
não quando deve.

Olhos nos olhos é uma treta;
conhecem a conveniência do momento;
assaltam-se ou afastam-se
não se vê se por gosto se a contra gosto.

É preciso saber muito para entender os olhos nos olhos.
Sou ignorante. Também tenho medo.

Assim, já está bem.
Estou a ver.

Vou guardar a imagem na pele.

Agora
sento-me eu,
também de lado.

Pode olhar.
Veja como é firme
a fissura dos lábios. 

Zeferino Silva

Amanhã é outro dia

Sentar à máquina de escrever. Folhear
um romance policial. No fim
ficar sabendo o que você já sabe:
o secretário de cara limpa, com barba rija,
é o assassino do senador
e o amor do jovem sargento da comissão de inquérito
pela filha do almirante é correspondido.
Mas você não vai pular nenhuma página.
De vez em quando, ao folhear, uma olhada rápida
para a folha em branco na máquina de escrever.
Seremos poupados disso, então. Bem, isso já é alguma coisa.
Saiu no jornal: num vilarejo qualquer,
as bombas não deixaram pedra sobre pedra.
Lamentável, mas o que você tem com isso.
O sargento está para impedir o segundo assassinato
embora a filha do almirante esteja (pela primeira vez!)
oferecendo a ele os lábios, serviço é serviço.
Você fica sem saber quantos mortos, o jornal sumiu.
Ao lado, sua mulher sonha com o primeiro amor.
Ontem ela tentou se enforcar. Amanhã
vai cortar os pulsos ou sabe-se-lá-o-quê.
Pelo menos ela tem um objetivo em vista.
Que ela ainda há de atingir, de um jeito ou de outro,
e o coração é um vasto cemitério.
A história da Fátima no Neues Deutschland
era tão mal escrita que fez você rir.
A tortura é mais fácil de aprender que a descrição da tortura.
O assassino caiu na armadilha
O sargento encerra o prémio nos braços.
Agora você pode dormir. Amanhã é outro dia.

Heiner Müller, trad. Rodrigo Garcia Lopes

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Por um Fio

Não venhas devagar
com tanta pressa. Deixa
que derrame a fome
nos quintais e a maldição
suspeite do suave
aroma do delírio. Envia
o que te sobra
ou rouba
o mais pequeno passo
por um fio.

José Carlos Soares

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Paisagem

Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.
Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.
Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.
E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»
Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.
(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Tzu Chi: Entre as Flores

A luz no lago, de súbito, esconde-se atrás do muro,
Invadem o quarto os cheiros misturados de flores.
Na borda do biombo, o pó que a borboleta espalhou,
Na janela lacada, a mancha amarela da abelha.
Deixa esses papéis oficiais para os escriturários,
Há um criado para cada funcionário público honesto.
Vamos de cavalgada ouvir os poemas um do outro.
Que há de tão urgente nesses assuntos em que perdes o coração?

Li Shang Yin, trad. José Alberto Oliveira

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Os Objectos Principais

... poderemos,um dia,amar estas vitrinas
como quem ama uma ideia imperdoável, ou uma
breve hesitação dos condutores
a meio do percurso? quero dizer,
estaremos vivos para o desbotar destas
folhas de plástico que brilham
uma vez cada noite; e para
o assobio das nuvens
ao passar sobre a roupa?
ou, fechando a gaveta, engoliremos o receio
destes bolos roubados
na prateleira de água?
ou será este o dilema que nos propõem
as minuciosas escavações telefónicas?
são questões ignorantes, delas depende o rumo
dos grandes navios japoneses à entrada da doca.

António Franco Alexandre

Realizar

Realizo o sonho ao destino
ofertado. Retiro a irrealidade
e a contemplo em matéria
rio do segredo
descubro
avanço o tempo
à semeadura
e retorno em colheitas
a casa serve ao senhor
o estio ao crescimento da planta
depois do cultivo
sobre a terra
em inundações lavo a sombra
da irrealidade. Deposito
diante do homem
a sobra na satisfação
do todo.


Pedro Du Bois

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A Velhice Pede Desculpas

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.
Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.
Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.
Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.
Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Na margem das horas...

Preso ao Meu Destino
E preso ao meu destino eu principio
onde um pequeno sol por entre as árvores
perscruta o chão.
Ávido enfim de azul,
meu grito vive a ponte que o abismo
há muito conquistou.
O lume é ténue,
a chama é quase ausente e quase extinta.

António Salvado

Poesia

É a visita do tempo nos teus olhos,
é o beijo do mundo nas palavras
por onde passa o rio do teu nome;
é a secreta distância em que tocas
o princípio leve dos meus versos;
é o amor debruçado no silêncio
que te cerca e que te esconde:
como num bosque, lento, ouvimos
o coração de uma fonte não sei onde...

Vítor Matos e Sá

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Eu e Tu Dois!

Eu e Tu, num ser indispensável! Como
Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,
Aspiram a formar um todo, — em cada assomo
A nossa aspiração mais violenta se ateia...

Como a onda e o vento, a Lua e a noite, o orvalho
[e a selva
— O vento erguendo a vaga, o luar doirando a
[noite,
Ou o orvalho inundando as verduras da relva —
Cheio de ti, meu ser de eflúvios impregnou-te!
Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,
O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,
O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,
— Nós dois, de amor enchendo a noite do degredo,
Como partes dum todo, em amplexos supremos
Fundindo os corações no ardor que nos inflama,
Para sempre um ao outro, Eu e Tu, pertencemos,
Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama...

António Feijó

O mar é longe

O mar é longe,mas somos nós o vento; e a lembrança que tira,até ser ele, é doutro e mesmo,é ar da tua boca onde o silêncio pasce e a noite aceita. Donde estás,que névoa me perturba mais que não ver os olhos da manhã com que tu mesma a vês e te convém? Cabelos,dedos ,sal e a longa pele, onde se escondem a tua vida os dá; e é com mãos solenes,fugitivas, que te recolho viva e me concedo a hora em que as ondas se confundem e nada é necessário ao pé do mar. 

Pedro Tamen

A realidade é simples...

Aceitarás o amor como eu o encaro ?... ...Azul bem leve, um nimbo, suavemente Guarda-te a imagem, como um anteparo Contra estes móveis de banal presente. Tudo o que há de melhor e de mais raro Vive em teu corpo nu de adolescente, A perna assim jogada e o braço, o claro Olhar preso no meu, perdidamente. Não exijas mais nada. Não desejo Também mais nada, só te olhar, enquanto A realidade é simples, e isto apenas. Que grandeza... a evasão total do pejo Que nasce das imperfeições. O encanto Que nasce das adorações serenas. 

Mário de Andrade

O vento da vida

Tu eras também uma pequena folha que tremia no meu peito. O vento da vida pôs-te ali. A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu sangue, falaram pela minha boca, floresceram comigo. 

Pablo Neruda

Trajecto

Não passo de uma fecha disparada para o ar, que desce de novo, insegura do seu alvo 

Abou-t-Tayyib Ahmad ibn al-Husayn al-Mutanabbi

Soneto de amor

Não me peças palavras, nem baladas, Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio, Deixa cair as pálpebras pesadas, E entre os seios me apertes sem receio. Na tua boca sob a minha, ao meio, Nossas línguas se busquem, desvairadas... E que os meus flancos nus vibrem no enleio Das tuas pernas ágeis e delgadas. E em duas bocas uma língua..., - unidos, Nós trocaremos beijos e gemidos, Sentindo o nosso sangue misturar-se. Depois... - abre os teus olhos, minha amada! Enterra-os bem nos meus; não digas nada... Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce! 

José Régio

Angela Adonica

Hoje deitei-me junto a uma jovem pura como se na margem de um oceano branco, como se no centro de uma ardente estrela de lento espaço. Do seu olhar largamente verde a luz caía como uma água seca, em transparentes e profundos círculos de fresca força. Seu peito como um fogo de duas chamas ardia em duas regiões levantado, e num duplo rio chegava a seus pés, grandes e claros. Um clima de ouro madrugava apenas as diurnas longitudes do seu corpo enchendo-o de frutas estendidas e oculto fogo. 

Pablo Neruda

Um beijo

Um beijo em lábios é que se demora e tremem no abrir-se a dentes línguas tão penetrantes quanto línguas podem. Mais beijo é mais. É boca aberta hiante para de encher-se ao que se mova nela. É dentes se apertando delicados. É língua que na boca se agitando irá de um corpo inteiro descobrir o gosto e sobretudo o que se oculta em sombras e nos recantos em cabelos vive. É beijo tudo o que de lábios seja quanto de lábios se deseja. 

Jorge de Sena
A terra leva-nos por terra; mas tu, mar, levas-nos pelo céu. 

Juan Ramón Jiménez

Villa Dei Misteri

Tiro os óculos e recua o mundo: torno à mais árdua intimidade. Diónisos ou Penteus, antes do sangue pesa já a vinha sobre as colinas de Outubro. As bodas místicas do deus e da noviça, meu destino branco, minha face nocturna, não os preserva a ciência dos três livros, nem figurariam, por certo, na cinza dos restantes. Sei, entre névoas e azul, de uma biblioteca deserta, cujas estantes, por desnudas, não enjeitam a mais discreta sabedoria. Em sua transparência se inscrevem, como a luz à luz se sobrepõe. Trago na pele e nos olhos, sobre a língua e o palato, a memória escaldante de uma mulher. Devora-me um álcool lento e sedicioso. De todas as mortes sofridas, só esta temo e não desejo. 

Rui Knopfli

Nada feito, nada...

All or Nothing at All Tudo ou todo nada, pedra ou furo d'água, feito cada palavra, lança, dardo, ferida, em cheio nada. De nada em nada, o se-dizer do tudo, feito risco na água, onda, contorno, reflexo de nada. Nada feito nada, no poema não há termo meio, meio-amor, meia-palavra. Do sem sentido intenso se faz um tudo atento, feito a palavra em cantada, nada feito nada. 

Frederico Barbosa

Passear

Do fim do mundo - a rua – vejo traçados os limites do passeio na distância necessária à passagem do corpo - o transitar no espaço esvaziado – na concretização do traço: coberto em pedras na massa cimentada o passeio se oferece ao corpo: estanca a passagem. 

Pedro Du Bois

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Gravuras no Vento I

Gravura no vento. Pois é desacontecido o acontecimento. Em êxtase, vê-las... Uma a uma, todo o céu porejando estrelas. Pendentes de um fio, gotas de chuva — ou de sol — sob o sol do estio. Dentro do aranhol, de repente, frente a frente, uma aranha e o sol. Animal nasceu. Desanimalmente, agora, vive... num museu. Tarde longa e quente. Tange longe uma araponga seu grito fremente. Compensar sua ausência — evidente, este evidência! — só sua alegria. À pista vermelha de uma flor, vem uma rima e aflorissa: abelha. Incrível talento, o desse escultor das nuvens — genial! —, o vento. Ploc! Uma rã pula no silêncio da lagoa, e o silêncio ondula. Não metal de sinos. Vil-metal agora é a rima que canta o Natal. Nos cinzeiros jazem — antecipantes — as cinzas mortais dos fumantes. Seu corpo enriquece a terra. E a saudade é a flor que floresce. Ela — uma andorinha — vendo as outras que não estavam — nem uma — sozinha. Claro desafio: sete cores luminosas ante um céu sombrio. Fantasmagoria: uma borboleta preta em noite vazia. Interrogativo à beira de um charco, um velho coqueiro — pendido. Lenta, lentamente, um caleidoscópio gira. Gira-sol poente. Oca, ressequida, na carcassa da cigarra, em silêncio, a vida... 

Oldegar Vieira

Gravuras no Vento II

Cabelos ao vento, soltos, como vão revoltos — ah — seus pensamentos. Doze, compassadas, tangendo o silêncio e o tempo, doze badaladas... Fina e clara, a chuva, qual a janela que tem mais bela cortina? Nuvens e mais nuvens a passar, bem que me deite. Foi-se o ... meu luar. Uma flor no mato solitária, rubra, sangue no verde compacto. Não tem sul nem norte, nem oeste ou leste — é céu. Céu somente azul. Voltevolteiando no cristal do tanque, as carpas silenciosonhando... Sol da madrugada. Vai surgindo: dentro de uma teia iluminada! Uma borboleta. Nada mais, nem leve aragem. E a rosa é desfeita. Flor em que não vai a libélula pousar. Na espuma do mar. Por acaso a sua caminhada é a mesma, ou ela o acompanha, a lua? Ramagens crestadas reflorindo: borboletas nas cinzas, pousadas. Voz da cachoeira, ao viço da mata vai líquida poeira. Reflita: no espelho, aquele que o imita, quem será? Você? Lembradas jamais, as flores do morto vão mortas, muito mais. Tem cativo, o canto, mas o muda borboleta é livre, no entanto. Noite a dentro, um cão late, insone, a quem nem late, seu insone irmão. Ah, esse berreiro das cigarras no austero parque do mosteiro... Num céu claro e puro, um corvo paira sereno — feio, torvo, escuro. Cai a neve, e penso no quanto se deve ser puro como a neve. Que fazer com as mãos, não mais — não — senão guardar seu fugaz perfume? Ouracorrentado. Entre seios femininos, recrucificado. Espana a poeira de luz das estrelas, ou — no vento — é palmeira? Mudos edifícios permutando, permutando surdos malefícios. Fuçando em monturos, anjos andrajosos de presépios escuros. Chuva de verão, chuva de flores na chuva. Reflorindo, o chão. Os bois, pacientes. Mas as rodas, por que vão gemendo, gementes? Brancos, a igreja e o casario entre verdes, escorrendo ao rio. Na rua quieta, a flauta de um vagabundo — músicopoeta. Nas mãos de uma negra — noite-escrava —, uma urupemba peneirando estrelas.

Oldegar Vieira

Gravuras no Vento III

É flor esquecida, esta que resta no mármore, lembrando outra vida? Um fruto maduro, pendente, precisamente na linha do muro. Trapos do abandono — do espantalho — vai levando o vento do outono. Sob o anil do céu e ao sol — branco — um enxoval num varal, ao vento... Tê-las nas mãos quis, pois jamais alguém falara ao cego, de estrelas. Junquilhos envergam. Flores de neve pousando nas hastes, de leve. Na rua deserta — desperdício — eis que ela passa numa hora incerta. Flor de velho amor, expressiva? Só se for — morta — a sempre-viva. Serão. Ninguém fala. Somente os trilos dos grilos nos desvãos da sala. Grávida ela passa, e como vai cheia, cheia de Vida e de Graça. E o menino via: afinal, esse "natal"... não o merecia. Não mais florescentes, no lixo largadas, são flores — defloradas. Tatuagem móvel no pavimento: a ramagem ao luar e ao vento. Que Deus o proteja não pede. O que pede é pão na porta da igreja. Andorinhas: fusas na pauta dos fios, ou... ou semi-confusas? Pétalas levava — eram rosas — nas suas, outras mãos, nervosas. Sim, cantar mas sem — como a cigarra — pensar que a morte lhe vem. Musicalizado na folhagem, vai o vento, músico em viagem. Mudos nas estantes, são pacíficos soldados? Mudos mas prestantes. Quase um rei deposto. Não mais arde o sol da tarde. No espelho, o seu rosto. Auroralmagia! O canto claro dos galos clareando o dia. Lâmina de luz — a lagoa — estilhaçada sob a chuvarada. O mal da intriga sofre o mundo mas, ao monge, o silêncio abriga. Somente a ilumina — à imponente nave em sombras — uma lamparina. Brutos lenhadores mas bastante foi que vissem um ninho entre flores. Túmida e sangrenta, da escura folhagem surge lenta, lenta, a lua. Lavando e cantando, o riacho e as lavadeiras, cantando e lavando. Quebrado o relógio, fez-se eternidade o tempo desmecanizado. Por entre os telhados, mamoeiras, bananeiras — bem domesticados. Numa folha escrevo todo um poema: seu nome. Na folha de um trevo. Na concha rosada de uma pétala, uma pérola de orvalho, engastada. Bagunça, arruaça, nenhuma... a não ser dos pombos, os donos da praça. Sombra do seu corpo diz que sou, mas foge e faz sombra em minha vida. Seixo — ao léu rolado, rolarrolando... exilado peso-de-papel. Causa de desgosto, a mensagem vai no rosto como tatuagem. Na ramada nua pousado, um corvo, calado, vê nascendo a lua. Na clara do céu flutua — lua de fogo — a gema do sol. Acaso... um acaso? Ou proposital derrame de tintas no ocaso? Difuso e em surdina, o rumor de uma cascata dentro de uma neblina. Pétalas caídas ou borboletas dormidas que o vento desperta? Não lhe serve a prosa. Só em linguagem poética diga o nome "rosa". 

Oldegar Vieira

Na minha bagagem

Na minha bagagem cabem todas as estações que vivi Entre tantas outras coisas de duvidosa utilidade cabem ainda na minha bagagem as minhas memórias e os meus esquecimentos (sobretudo aqueles de que ainda me lembro) A minha bagagem parece-me muitas vezes enorme mas depois – quem sabe? - talvez haja por ali um problema de arrumação um excesso de cachecóis a falta de qualquer coisa Certo, certo, é que a sinto pequena, a minha bagagem quando me lembro de mim em menino e de como me pareciam tão grandes todos os adultos A minha bagagem não serve de exemplo senão a mim próprio e ao que de mim resta depois de tantas viagens feitas e de tantas outras que ficaram por fazer Tem pouco de memorável a minha bagagem mas cabem nela uma quantidade de coisas que não esqueci um par de sonhos uns ténis para jogar à bola os meus quixotes aqueles que amo para lá de qualquer meridiano Comparecem ainda na minha bagagem uns quantos amigos que considero luminosos mesmo quando não são brilhantes e que seriam sempre raros mesmo se fossem muitos O futuro da minha bagagem confunde-se com o meu. 

Rui Antunes

Tenho uma pedra

Tenho uma pedra no sapato 
E outra no coração 
A pedra do coração 
É a mais pesada 
Não sei se por ser maior 
Ou mais teimosa 
O médico disse-me 
Que tinha de aprender 
A atirar fora as pedras 
Como toda a gente 
Mas eu acho que as minhas estão coladas 
O médico não percebe nada de pedras 
Nem de corações 

Bibi Pereira