domingo, 23 de outubro de 2011

Canção da Alma Caiada

Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar
Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.
De dia caio minh’alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.

António Cícero

SEMPRE TE AMAREI

Banda Segredo de Amar

Tô mentindo tô tentando dar um jeito,
Nessa falta, nessa dor que bate dentro do meu peito.
Fico noites acordadas pra poder pensar
E, às vezes, imagino ouvir você falar,
Isso tudo me faz ver que ainda te quero.

Já é hora de parar com tanto engano,
Com minhas fugas e mentiras, tentativas de te esquecer,
Tudo que eu faço, faço pra encontrar uma saída,
Sei que é tua a minha vida, não tá fácil viver sem você,

Desde que te conheci não te tirei do pensamento,
Não te esqueci um só momento,
Hoje eu quero poder te dizer.

Te amo e sempre te amarei,
Mesmo que o tempo me afaste para bem longe de ti,
Mesmo assim eu encontrar outra pessoa para mim,
Se a razão disser que não, prefiro ouvir o coração.

Te amo e sempre te amarei e vou levar você comigo para onde quer que eu vá,
Pra onde eu for irá comigo a esperança de voltar,
Quem sabe assim olhar no fundo dos teus olhos e dizer:
Te amo e sempre te amarei.

Daniel Maia (Coremas)
 FONTE: Blog Enio Ricardo

Desfazer

Numero acontecimentos
desordenadamente. Capitulo
ao extremo desgosto
das arrumações: a cama
os objetos
a comida
o banho
retiro da estante o livro
instantaneamente convertido
em acompanhante: desarrumo os fatos
e os distribuo pela casa:
a história forjada
de reis e reinos:
a desabilitação das fábulas
moralizam o animal que teima
sua liberdade.

Pedro Du Bois

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Acalmia ruidosa

Em quatro sinos

1. instante inicial
eis a história das sílabas igualando
os confins das linhas de água.
a alegria peregrina percorre cidadelas
como as sentinelas do mar: as águas
vêm dar à beleza das sílabas
como se houvesse um luminoso
reencontro: era o instante inicial.

2. primeiro instante intermédio
esperava que a paisagem pintasse
noites vizinhas. E insígnias rebuscando
cacimbos numa desconhecida povoação.
Porém, apareceram riozinhos esverdeados
Iluminando armadilhas, angústias
E telas infernais: nascia a nação comum
Encerrando torturas sobre as lágrimas.

3. segundo instante intermédio
parecia um reino de passo fascinante
suficiente para enriquecer estômagos estranhos.
precioso? os rios não diziam o contrário.
e desfilava maldita miséria insuficiente
para desencantar a plenitude humana.
em reino que raspava a fortuna
crescia a flor do dia frequentando
abraços virgens. ricos em sonhos enfeitiçados.

4. instante final
teria o solo da eternidade outras cinzas?
onde adormece o abrigo crescem
um insondável silêncio e delicadas
folhas cuja cor saúda a origem da sombra:
todas as cinzas pronunciavam a eternidade.
Era a repetição dos passos e imagens.
Imagens do milénio anterior.

João Maimona

A Chuva Pasmada

Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível:
um outro coração.

Mia Couto

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Os dias cinzentos

Os dias cinzentos. Eles vêm, eles insinuam-se com o tempo. Deixas de vislumbrar os matizes que desaparecem como ténues, cintilantes flocos na memória. Ficar sentado e pensar de repente. Que está mais cinzento, que queres libertar-te, mas continuas sentado, em completo silêncio, imaginas-te dentro do cinzento porque há nele uma leveza, porque ele é algo de fortuito que se ajusta bem aos dias, e quando queres sair dele, estás deitado indefeso no meio do caminho, como um animalzinho, destrutível, mesmo com o mais ligeiro toque.

Aasne Linnesta

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Como sempre

Duas mulheres jogavam as cartas.
Eram as duas formosas e perversas.
As duas faziam batota. A partida
prolongava-se mais do que o costume,
a julgar pelos gestos de impaciência
que nenhuma ocultava. Vida e Morte
se chamavam. E tinham apostado
o coração de um homem, como sempre.

Amália Bautista, Luís Januário

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Da vida breve

Usem as vossas jóias de oiro e os vossos vestidos de seda.
Saboreiem enquanto é tempo os frágeis prazeres da vida.
Os ramos ficarão despidos quando vier o grande frio.
Sem o sol, emurchecidas as flores, que é a vida? Apenas saudade.

Tu Chiu Nang, trad. António Ramos Rosa

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Submerso

Recupero na música
triste dos portenhos
a saudade
escondida
sob a pele
curtida
do progresso:
tenho medo
de não regressar
ao útero
e me ver afastado
ao todo da família
a música cadencia o olhar
absorto ao nada: olho
e não vejo o presente
no arco do trajeto
a música se faz ágil
e forte: corto as amarras
e submerjo.

Pedro Du Bois

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Acaso de existir

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...
A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.
Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.
E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino. 

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

As artes do fogo

Levanto as mãos e o vento levanta-se nelas.
Rosas ascendem do coração trançado
das madeiras.
As caudas dos pavões como uma obra astronómica.
E o quarto alagado pelos espelhos
dentro. Ou um espaço cereal que se exalta.
Escondo a cara. A voz fica cheia de artérias.
E eu levanto as mãos defendendo a leveza do talento
contra o terror que o arrebata. Os olhos contra
as artes do fogo.
Defendendo a minha morte contra o êxtase das imagens.

Herberto Hélder

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Labirinto de sombras

Fabricava sombras,
chinesas, decorativas e pontualmente comunhões,
mas o telefone nunca tocava,
por vezes um rato cruzava o cenário,
procurando queijo, esconderijos, essas
coisas, já sabem ao que me refiro,
outras vezes havia fantoches,
amiúde ia perdendo os poucos papéis a que se podia permitir,
em raras ocasiões bebo, declarou, nunca
quando trabalho,
só quando a garrafa caiu
ao chão, e depois,
é que adivinhou aquela solidão que o contemplava,
inventou um chapéu imaginário, também de sombra,
e fez uma saudação magnífica no ar,
as cores das lâmpadas resvalam ainda pelas paredes,
as algemas embutiram as mãos, uma
última saudação, disse, o cenário, disse,
trata-se da minha vida, a solidão
brindava, tão solitário como ela o carro partiu,
outro jogo de sombras contra a parede.

Alfons Navarret

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Corrente

Sobre a corrente
o rio desfaz o tempo
aquoso da espera:
nenhuma carta recebida
no tempo inócuo de lembranças
a água caudalosa
despejada pela represa:
toda água represada
repercute caudas
de dragões extintos.

Pedro Du Bois

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Homenagem a Fernando Peixoto

o

Fernando Peixoto - 1947-2008

Neste dia que faz 3 anos que nos deixaste rumo a qualquer uma das estrelas que construíste no paraíso dos Poetas, e à semelhança de homenagem a este grande vulto das letras, do teatro e companheiro de Luta, deixo aqui o poema declamado por o teu amigo Cesário Costa, na última Noite de Poesia em Vermoim:

MARÉS
TRAGÉDIA ABSURDA
(Última Encenação de Fernando Peixoto)
1ª CENA
Um vulto!
Mar encapelado,
ondas gigantes
e a mancha negra,
emaranhada de sargaço,
estreitando-o.
2ª CENA
Farol!
Emergência.
Monte da Virgem.
«Cama 23!» - disse a mulher.
3ª CENA
Mar liso e grosso!
Não há ondulação.
Outra maré.
4ª CENA
(Dias depois)
9,10 h
03-10-2008
»O Vulto desapareceu» - informou a filha.
5ª CENA
Silêncio!
Palco escuro.
Desce o pano.
6ª CENA
Estrondosa ovação!
- De pé!
À sétima onda,
Fernando Peixoto,
na nossa lembrança,
entrará por aquela porta!
(Cesário Costa, 01-11-2008)

Este poema foi declamado por Cesário Costa no dia 1 de Outubro de 2011, no Salão Nobre da Junta de Freguesia de Vermoim, no final da Tertúlia do mês de Outubro.


Os presentes, de pé, deram uma estrondosa salva de palmas, em homenagem a este Amigo, agora no céu dos Poetas.

Um abraço,
José Gomes

sábado, 1 de outubro de 2011

Encontro com a Poesia

Solitária,
a Poesia percorre a Terra.
Sua voz possui as notas da
dor do mundo.
Ela nada pede,
sequer palavras.
Vem de longe, jamais
avisa a hora de sua chegada:
suas são as chaves da porta.
Entra. Olha-nos profundamente.
Depois, suas mãos se abrem:
Entrega-nos uma flor,
um seixo? Algo secreto,
tão intenso que o coração
dispara.
Então, despertamos.

Eugénio Montejo, trad. Sandra Baldessin