domingo, 23 de outubro de 2011

Canção da Alma Caiada

Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar
Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.
De dia caio minh’alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.

António Cícero

SEMPRE TE AMAREI

Banda Segredo de Amar

Tô mentindo tô tentando dar um jeito,
Nessa falta, nessa dor que bate dentro do meu peito.
Fico noites acordadas pra poder pensar
E, às vezes, imagino ouvir você falar,
Isso tudo me faz ver que ainda te quero.

Já é hora de parar com tanto engano,
Com minhas fugas e mentiras, tentativas de te esquecer,
Tudo que eu faço, faço pra encontrar uma saída,
Sei que é tua a minha vida, não tá fácil viver sem você,

Desde que te conheci não te tirei do pensamento,
Não te esqueci um só momento,
Hoje eu quero poder te dizer.

Te amo e sempre te amarei,
Mesmo que o tempo me afaste para bem longe de ti,
Mesmo assim eu encontrar outra pessoa para mim,
Se a razão disser que não, prefiro ouvir o coração.

Te amo e sempre te amarei e vou levar você comigo para onde quer que eu vá,
Pra onde eu for irá comigo a esperança de voltar,
Quem sabe assim olhar no fundo dos teus olhos e dizer:
Te amo e sempre te amarei.

Daniel Maia (Coremas)
 FONTE: Blog Enio Ricardo

Desfazer

Numero acontecimentos
desordenadamente. Capitulo
ao extremo desgosto
das arrumações: a cama
os objetos
a comida
o banho
retiro da estante o livro
instantaneamente convertido
em acompanhante: desarrumo os fatos
e os distribuo pela casa:
a história forjada
de reis e reinos:
a desabilitação das fábulas
moralizam o animal que teima
sua liberdade.

Pedro Du Bois

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Acalmia ruidosa

Em quatro sinos

1. instante inicial
eis a história das sílabas igualando
os confins das linhas de água.
a alegria peregrina percorre cidadelas
como as sentinelas do mar: as águas
vêm dar à beleza das sílabas
como se houvesse um luminoso
reencontro: era o instante inicial.

2. primeiro instante intermédio
esperava que a paisagem pintasse
noites vizinhas. E insígnias rebuscando
cacimbos numa desconhecida povoação.
Porém, apareceram riozinhos esverdeados
Iluminando armadilhas, angústias
E telas infernais: nascia a nação comum
Encerrando torturas sobre as lágrimas.

3. segundo instante intermédio
parecia um reino de passo fascinante
suficiente para enriquecer estômagos estranhos.
precioso? os rios não diziam o contrário.
e desfilava maldita miséria insuficiente
para desencantar a plenitude humana.
em reino que raspava a fortuna
crescia a flor do dia frequentando
abraços virgens. ricos em sonhos enfeitiçados.

4. instante final
teria o solo da eternidade outras cinzas?
onde adormece o abrigo crescem
um insondável silêncio e delicadas
folhas cuja cor saúda a origem da sombra:
todas as cinzas pronunciavam a eternidade.
Era a repetição dos passos e imagens.
Imagens do milénio anterior.

João Maimona

A Chuva Pasmada

Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível:
um outro coração.

Mia Couto

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Os dias cinzentos

Os dias cinzentos. Eles vêm, eles insinuam-se com o tempo. Deixas de vislumbrar os matizes que desaparecem como ténues, cintilantes flocos na memória. Ficar sentado e pensar de repente. Que está mais cinzento, que queres libertar-te, mas continuas sentado, em completo silêncio, imaginas-te dentro do cinzento porque há nele uma leveza, porque ele é algo de fortuito que se ajusta bem aos dias, e quando queres sair dele, estás deitado indefeso no meio do caminho, como um animalzinho, destrutível, mesmo com o mais ligeiro toque.

Aasne Linnesta

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Como sempre

Duas mulheres jogavam as cartas.
Eram as duas formosas e perversas.
As duas faziam batota. A partida
prolongava-se mais do que o costume,
a julgar pelos gestos de impaciência
que nenhuma ocultava. Vida e Morte
se chamavam. E tinham apostado
o coração de um homem, como sempre.

Amália Bautista, Luís Januário

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Da vida breve

Usem as vossas jóias de oiro e os vossos vestidos de seda.
Saboreiem enquanto é tempo os frágeis prazeres da vida.
Os ramos ficarão despidos quando vier o grande frio.
Sem o sol, emurchecidas as flores, que é a vida? Apenas saudade.

Tu Chiu Nang, trad. António Ramos Rosa

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Submerso

Recupero na música
triste dos portenhos
a saudade
escondida
sob a pele
curtida
do progresso:
tenho medo
de não regressar
ao útero
e me ver afastado
ao todo da família
a música cadencia o olhar
absorto ao nada: olho
e não vejo o presente
no arco do trajeto
a música se faz ágil
e forte: corto as amarras
e submerjo.

Pedro Du Bois

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Acaso de existir

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...
A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.
Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.
E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino. 

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

As artes do fogo

Levanto as mãos e o vento levanta-se nelas.
Rosas ascendem do coração trançado
das madeiras.
As caudas dos pavões como uma obra astronómica.
E o quarto alagado pelos espelhos
dentro. Ou um espaço cereal que se exalta.
Escondo a cara. A voz fica cheia de artérias.
E eu levanto as mãos defendendo a leveza do talento
contra o terror que o arrebata. Os olhos contra
as artes do fogo.
Defendendo a minha morte contra o êxtase das imagens.

Herberto Hélder

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Labirinto de sombras

Fabricava sombras,
chinesas, decorativas e pontualmente comunhões,
mas o telefone nunca tocava,
por vezes um rato cruzava o cenário,
procurando queijo, esconderijos, essas
coisas, já sabem ao que me refiro,
outras vezes havia fantoches,
amiúde ia perdendo os poucos papéis a que se podia permitir,
em raras ocasiões bebo, declarou, nunca
quando trabalho,
só quando a garrafa caiu
ao chão, e depois,
é que adivinhou aquela solidão que o contemplava,
inventou um chapéu imaginário, também de sombra,
e fez uma saudação magnífica no ar,
as cores das lâmpadas resvalam ainda pelas paredes,
as algemas embutiram as mãos, uma
última saudação, disse, o cenário, disse,
trata-se da minha vida, a solidão
brindava, tão solitário como ela o carro partiu,
outro jogo de sombras contra a parede.

Alfons Navarret

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Corrente

Sobre a corrente
o rio desfaz o tempo
aquoso da espera:
nenhuma carta recebida
no tempo inócuo de lembranças
a água caudalosa
despejada pela represa:
toda água represada
repercute caudas
de dragões extintos.

Pedro Du Bois

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Homenagem a Fernando Peixoto

o

Fernando Peixoto - 1947-2008

Neste dia que faz 3 anos que nos deixaste rumo a qualquer uma das estrelas que construíste no paraíso dos Poetas, e à semelhança de homenagem a este grande vulto das letras, do teatro e companheiro de Luta, deixo aqui o poema declamado por o teu amigo Cesário Costa, na última Noite de Poesia em Vermoim:

MARÉS
TRAGÉDIA ABSURDA
(Última Encenação de Fernando Peixoto)
1ª CENA
Um vulto!
Mar encapelado,
ondas gigantes
e a mancha negra,
emaranhada de sargaço,
estreitando-o.
2ª CENA
Farol!
Emergência.
Monte da Virgem.
«Cama 23!» - disse a mulher.
3ª CENA
Mar liso e grosso!
Não há ondulação.
Outra maré.
4ª CENA
(Dias depois)
9,10 h
03-10-2008
»O Vulto desapareceu» - informou a filha.
5ª CENA
Silêncio!
Palco escuro.
Desce o pano.
6ª CENA
Estrondosa ovação!
- De pé!
À sétima onda,
Fernando Peixoto,
na nossa lembrança,
entrará por aquela porta!
(Cesário Costa, 01-11-2008)

Este poema foi declamado por Cesário Costa no dia 1 de Outubro de 2011, no Salão Nobre da Junta de Freguesia de Vermoim, no final da Tertúlia do mês de Outubro.


Os presentes, de pé, deram uma estrondosa salva de palmas, em homenagem a este Amigo, agora no céu dos Poetas.

Um abraço,
José Gomes

sábado, 1 de outubro de 2011

Encontro com a Poesia

Solitária,
a Poesia percorre a Terra.
Sua voz possui as notas da
dor do mundo.
Ela nada pede,
sequer palavras.
Vem de longe, jamais
avisa a hora de sua chegada:
suas são as chaves da porta.
Entra. Olha-nos profundamente.
Depois, suas mãos se abrem:
Entrega-nos uma flor,
um seixo? Algo secreto,
tão intenso que o coração
dispara.
Então, despertamos.

Eugénio Montejo, trad. Sandra Baldessin

domingo, 25 de setembro de 2011

Coração a Coração

Enfim aqui estou de pé
Passei por ali
Alguém passa por lá agora
Como eu
Sem saber onde vai
Eu tremia
Ao fundo do quarto a parede era negra
Ele tremia também
Como pude eu transpor o limiar dessa porta
Poder-se-ia gritar
Ninguém ouve
Poder-se-ia chorar
Ninguém entende
Encontrei a tua sombra na obscuridade
Era mais doce do que tu
Antigamente
Estava triste a um canto
A morte trouxe-te essa tranquilidade
Mas tu falas ainda
Queria abandonar-te
Se entrasse ao menos um pouco de ar
Se o exterior nos deixasse ainda ver claro
Sufoca-se
O tecto pesa-me na cabeça e empurra-me
Onde vou eu meter-me para onde partir
Não tenho espaço que chegue para morrer
Onde vão os passo que se afastam e que escuto
Longe muito longe
Estamos sós a minha sombra e eu
A noite cai.

Pierre Reverdy , trad. Eugénio de Andrade

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Não a centelha mas o fogo

Lágrimas dos olhos, como centelhas de sílex,
como uma palavra justa, arrancar para que serve?
Nada há de especial. A palavra é como fogo,
e o coração do homem não vive de soluços.
Não é absolutamente isso que me atormenta.
Mas levantarmo-nos de madrugada, à chegada do dia,
e dizer a quem vai à frente:
- Felicidade! –
Dar-lhes uma canção, com toda a alegria,
que proteja como uma autêntica armadura,
das palavras que soam vãs e falsas.
Queremos do homem não a centelha mas o fogo.

Margarita Aliger, trad. Manuel de Seabra

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Pedras no caminho

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um 'não'.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo...

(Fernando Pessoa)

domingo, 11 de setembro de 2011

A primeira folha de Outono

Mudei de estação: o Outono ficou para trás e as minhas malas.
Agora o céu é duvidoso, como uma mentira inábil.
Na primeira taberna terei de esquecer
A carta melancólica que me tirou o sono.
Ocioso, arrasto-me pela rua, entre escritórios.
As andorinhas partiram e as máquinas de escrever ficaram.
No horizonte há uma grande trombeta de fumo.
Foi há pouco inventado um avião tão pequeno como uma borboleta.
Bravo! É um bom sinal.
A primeira folha de Outono cai no meu chapéu.

Rade Drainac, trad. José Alberto Oliveira

Este será meu cumprimento

Acabaram meus cigarros
dinheiro tenho pouco
nem uma pessoa influente de poder conheço
não levarei ninguém a qualquer promoção
portanto, não leia este verso
este poema como um meio,
por ele – que sou eu –
não chegará a nenhum futuro brilhante
nem a ocupar um cargo de bom salário
ou daqueles de excelentes aparências.
não tenho nem como trocar favores
não tenho nada que lhe possa interessar
se for por isso nem mesmo um minuto
vale perder comigo.
não precisa de discrição,
afasta-se rápido
finja em qualquer lugar que passo despercebido.
muitos conhecidos pensam em me querer
- no mínimo do que tenho.
mas não tenho nada, nem o mínimo
nem mesmo um verso rimado
não tenho o que oferecer
pode pensar que me ver
é avistar um rosto de dia de semana
um rosto de olhar cansado o trajeto de uma terça-feira
sim, sou um dia de semana arrastado
sem uma ninharia.
melhor, então, é me deixar jogado num canto
prometo que a partir de hoje
logo que alguém falar comigo
antes de todas as coisas falarei assim direto
não tenho nada – será meu cumprimento.

Jefferson Bessa

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Recobrar

Recobro a razão aos tantos anos
deixo de lado o esbulho
trabalhoso dos horários
e me solto em meses
antes naufragados.
Retorno ao horizonte
observável das promessas.
Abdico do direito
de ser a sociedade
concentrada em gestos.
Palmilho espaços descompassados
e me aproprio do caminho.
Devolvo cada pedra ao desenho anterior.


Pedro Du Bois

Vislumbre

Os poemas que escrevas,
ainda que muitos, são
um só, inacabável,
interceptado um dia:
sufocante abertura
por onde irás descendo
a um poço, uma vertigem,
com uma única saída
que, enfim, vislumbrarás
quando já não tiveres olhos.

José Bento

Lado certo da noite

Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
é quando se esgotam as palavras e os silêncios
e a minha mão procura a tua que a recebe
e a noite se unifica e todos os rios secam
menos um por onde navegamos
para abolir a noite.

Carlos Alberto Machado

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Responder

A resposta
ao impulso
gera
nova pergunta
e a ação descabida
do movimento: olho o nada
onde me vejo
estático
habito o mínimo
necessário à vida:
a morte me desconhece.

Pedro Du Bois

Ainda

Amei. É incompreensível como o tremor das árvores.
Agora estou extraviado na luz porém sei que amei.
Eu vivia num ser e seu sangue deslizava pelas minhas veias e
a música me envolvia e eu mesmo era música.
Agora,
quem está cego nos meus olhos?
Umas mãos passavam sobre meu rosto e envelheciam docemente.
Que foi existir entre cordas e espíritos?
Quem fui nos braços da minha mãe, quem fui no meu próprio coração?
É estranho:
somente aprendi a desconhecer e esquecer.
É estranho:
agora, o amor
habita no esquecimento.


Antonio Gamoneda, trad. António Cícero

Oferenda

Eu falo da profundidade da noite,
da escuridão abissal.
Se vieres a minha casa, amor,
traz-me luz.
E uma janela para que eu possa ver
a felicidade daquela rua repleta.

Forugh Farrojzad

Liberdade

A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
como os caminhos soltos pela terra,
como os pássaros livres pelos céus.
Ela é o sol dos caminhos ! Ela é o ar
que os enche os pulmões, é o movimento,
traz num corpo irrequieto como o mar
uma alma errante e boêmia como o vento.
Minha crença, meu Deus, minha bandeira,
razão mesma de ser do meu destino,
há de ser a palavra derradeira
que há de aflorar-me aos lábios como um hino.
Liberdade: Alavanca de montanhas!
Aureolada de louros ou de espinhos
há de cingir-me a fronte nas campanhas,
há de ferir-me os pés pelos caminhos.
Sinto-a viva em meu sangue palpitando
seja utopia ou seja ideal, - que importa?
Quero viver por esse ideal lutando,
quero morrer se essa utopia é morta!

J. G. de Araújo Jorge

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Escucha tu Voz Interior

No importa donde estés,
ni lo que te digan que debes hacer.
Siempre que tengas una duda,
descansa un momento y escucha
lo que te dice tu voz interior.

No te apresures en tu camino,
ni sigas los pasos de otros.
Siéntate y descansa un momento
y escucha tu voz interior.

Esta es la voz que te busca y guía
El mejor consejo que puedes escuchar
Trae pureza a tus sentimientos
y te da la libertad de ser realmente
La persona que quieres ser.

Recuerda: Todas las respuestas
que buscas las tienes encerradas
la tu limpia y pura voz interior.


Hacemos una vasija de un pedazo de
arcilla: y es el espacio vacío en
el interior de la vasija lo que
la hace útil. Hacemos puertas
y ventanas para una estancia;
y son esos espacios vacíos los
que la hacen habitable. Así, mientas
que lo tangible posee cualidades,
es lo intangible lo que lo hace útil.




Merche

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Mona Lisa

Em qualquer
dos tantos
quatro cantos do mundo
seu olhar me segue
e nos persegue
e acusa e condena
e zomba
de quem não sabe de quê
nem de porquê
Aquele olhar
é o centro de qual centro?

Helena Parente Cunha

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Amanhecer

Amanheço em nuvens de inverno.
No esfriar da hora sou corpo
despertado. Sigo o leito do rio
ao largo: estrito ao peito
da mulher amada no anunciar
horas anteriores de refúgio. Acordo
e levanto em ensolarados passos.
Da manhã retiro a necessidade
da utilidade. Sou repositório
da inatividade.

Pedro Du Bois

domingo, 14 de agosto de 2011

Força e convicção

Tem sempre presente que a pele se enruga,
o cabelo embranquece, os dias se convertem em anos...
Mas o que é mais importante não muda;
A tua força e convicção não têm idade.
O teu espírito é como qualquer teia de aranha.
Atrás de cada linha de chegada, há uma de partida.
Atrás de cada conquista, vem um novo desafio.

Enquanto estiveres viva, sente-te viva.

Se sentes saudades do que fazias, volta a fazê-lo.
Não vivas de fotografias amarelecidas...
Continua, quando todos esperam que desistas.
Não deixes que enferruje o ferro que existe em ti.
Faz com que em vez de pena, te tenham respeito.
Quando não conseguires correr através dos anos,
Trota.
Quando não conseguires trotar, caminha.
Quando não conseguires caminhar, usa uma bengala.
Mas nunca te detenhas.


Madre Teresa de Calcutá

Este Mundo Só

Do que mais me lembro - o silêncio
acima de tudo um enorme silêncio
como nenhum outro que eu tivesse sentido
e escutávamo-lo como se escuta
um bebé no berço e se teme
que já não esteja vivo ou não respire
e que não se ouve por multo tempo
um silêncio tão vasto e tão profundo que oiço
no meu próprio corpo o sibilar das veias
o meu coração mal posso acreditar
os músculos mexem-se e ouve-se
o sussurrar que as camisas e os fatos
fazem quando nos vestimos
de manhã oiço-os restolhar
quando passam uns pelos outros
como nós passamos pelo nosso silêncio
ouvi dizer que os colonos das pradarias do Canadá
encontravam um silêncio enorme vacilavam
ali no ar como aves num deserto
& um vazio inacreditável
passava por nós aos tombos
e as estrelas meu deus as estrelas muitas mais
do que eu teria alguma vez imaginado
não sei o que é mas este céu
é tão negro de um negro tão escuro mas
cheia de sol a terra é
uma luzinha brilhante de cortar
a respiração azul & branca o seu
hálito doce de nuvens
querida terra querida menina
tão sozinha a casa que deixámos
a terra tão redonda nunca imaginei
quão redonda quão pequena
até ter visto a terra

Dennis Cooley

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Fernando Pessoa na Rua da Madalena

A minha vida cabe dentro do escritório
E na sobreloja da leitaria alentejana
Nada nos meus poemas é provisório
Que escrevo nesta concreta geografia
Rua dos Fanqueiros, da Conceição
Rua da Madalena, dos Douradores
Abel Pereira da Fonseca ao balcão
Aquece o meu peito com os calores
Hoje Ofélia chama-se Inês ou Teresa
Sai às seis e desliga o computador
Cesário Verde aparece de surpresa
Na loja de ferragens fala ao vendedor
No Bairro Alto, no Hospital de S. Luís
O poeta antigo, afinal o mais moderno
É lúcido uma vez mais quando nos diz:
Eu preciso de morrer para ser eterno

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Silêncios

Tanto conversamos
em silêncio

seus olhos perguntam
respondo olhares
mágoas
tristezas
iras
raivas
surdas maneiras
de nos fazer entender
não estarmos juntos.

Pedro Du Bois

domingo, 7 de agosto de 2011

Esmalte

No esmalte azul-pálido,
Que é possível em Abril,
Erguiam ramos as bétulas
E um tudo-nada anoiteciam.
Na aguda, breve ramada,
Na teia imóvel - filigrana,
Como em pranto de porcelana,
Rede com precisão traçada -
No vidrado do firmamento
O gentil pintor a urdisse,
Na cônscia força do momento,
No olvido da morte triste.

Ossip Mandelstam, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Biografia

La vida que murmura. La vida abierta.
La vida sonriente y siempre inquieta.
La vida que huye volviendo la cabeza,
tentadora o quizá, sólo niña traviesa.
La vida sin más. La vida ciega
que quiere ser vivida sin mayores consecuencias,
sin hacer aspavientos, sin históricas histerias,
sin dolores trascendentes ni alegrías triunfales,
ligera, sólo ligera, sencillamente bella
o lo que así solemos llamar en la tierra.

Gabriel Celaya

Un amor así

Voy a hablarte de un amor desprotegido,
de un amor que se abre y abre y abre
y no piensa si actuar así es una actitud prudente y razonable.
De un amor que solo sabe ser y no calcula si a cambio
debe obtener amor de alguien.
Este es un amor totalmente irresponsable
que no corresponde a las reglas legales de intercambio.
No pide y solo es alegre si a todos y en todo se extiende.
Definitivamente, este amor es un amor totalmente inconveniente
en esta sociedad tan inteligente y razonable.
Un amor así es un sentimiento que no da utilidades a nadie
por eso es un derroche material imperdonable.

Guzmán Lavenant

Entusiasmos do coração

Vós olhais as flores no meio das folhas:
Quanto tempo de bom podem elas ter?
Hoje temem que alguém as colha
Amanhã aguardam que alguém as varra
Cativantes os entusiasmos do coração
Após vários anos envelhecem
Comparado com o mundo das flores
O fulgor do vermelho como o conservar?

Han-Shan (versão de Ana Hatherly)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

TER

Tê-la ao meu lado
ter-me prisioneiro
tê-la como consolo
ter-me desconsolado
tê-la entre tantas
ter-me sozinho
tê-la no anoitecer
ter-me na escuridão
tê-la no que inicia
ter-me sem origem
tê-la como estrela
ter-me sob as nuvens
tê-la no esplendor do vento
ter-me como calmaria
tê-la na amplidão do horizonte
ter-me em linha traçada.

Pedro Du Bois

Não te Fies do Tempo

Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo.
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te digo...

Cecília Meireles

domingo, 31 de julho de 2011

Aprendizagem

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até à noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

Ana Akhmatova, trad. Lauro Machado Coelho

sábado, 30 de julho de 2011

Tocata e Fuga

É tudo aquilo que só existe no ar,
0 que de nós, além de nós, se expande.
É a vertigem para o alto, igual à grande
Tocata e fuga em ré menor de Bach.
É o delírio de um bêbedo num bar
É um não sair do chão por mais que se ande
Tudo que em mim, somente em mim existe,
Me transporta, me absorve, me suspende,
Me faz sorrir embora eu esteja triste,
Triste naquele universal sentido
Que a música interpreta e se compreende
Sem que em palavras seja traduzido.

Dante Milano

Oferenda Oriental

Secas, bailam folhas sobre a relva e
o lençol tranquilo da geada
é uma canção do outono.
Integral, a noite:
no vento
no frio
no luar pacificado.

Aires Montenegro

Alice

É do lado de cá do espelho
que corremos perigo.
Do lado de lá
tudo tem solução:
Alice espera por nós,
Alice dá-nos a mão.

Yvette Centeno

terça-feira, 26 de julho de 2011

Homens que São como Lugares Mal Situados

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
Ilumino-a
Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em exame
Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome
Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela
E ilumino-a

Daniel Faria

Acerca de um perfil

Sente-se na minha frente.
Isso, um bocadinho de lado,
é melhor assim.
O perfil da boca fala melhor que os olhos.

Os olhos são muito sabidos,
olham e sabem-se olhados,
conhecem a arte de fingir.

A fissura dos lábios é de nervo rijo,
ri ou chora quando precisa,
não quando deve.

Olhos nos olhos é uma treta;
conhecem a conveniência do momento;
assaltam-se ou afastam-se
não se vê se por gosto se a contra gosto.

É preciso saber muito para entender os olhos nos olhos.
Sou ignorante. Também tenho medo.

Assim, já está bem.
Estou a ver.

Vou guardar a imagem na pele.

Agora
sento-me eu,
também de lado.

Pode olhar.
Veja como é firme
a fissura dos lábios. 

Zeferino Silva

Amanhã é outro dia

Sentar à máquina de escrever. Folhear
um romance policial. No fim
ficar sabendo o que você já sabe:
o secretário de cara limpa, com barba rija,
é o assassino do senador
e o amor do jovem sargento da comissão de inquérito
pela filha do almirante é correspondido.
Mas você não vai pular nenhuma página.
De vez em quando, ao folhear, uma olhada rápida
para a folha em branco na máquina de escrever.
Seremos poupados disso, então. Bem, isso já é alguma coisa.
Saiu no jornal: num vilarejo qualquer,
as bombas não deixaram pedra sobre pedra.
Lamentável, mas o que você tem com isso.
O sargento está para impedir o segundo assassinato
embora a filha do almirante esteja (pela primeira vez!)
oferecendo a ele os lábios, serviço é serviço.
Você fica sem saber quantos mortos, o jornal sumiu.
Ao lado, sua mulher sonha com o primeiro amor.
Ontem ela tentou se enforcar. Amanhã
vai cortar os pulsos ou sabe-se-lá-o-quê.
Pelo menos ela tem um objetivo em vista.
Que ela ainda há de atingir, de um jeito ou de outro,
e o coração é um vasto cemitério.
A história da Fátima no Neues Deutschland
era tão mal escrita que fez você rir.
A tortura é mais fácil de aprender que a descrição da tortura.
O assassino caiu na armadilha
O sargento encerra o prémio nos braços.
Agora você pode dormir. Amanhã é outro dia.

Heiner Müller, trad. Rodrigo Garcia Lopes

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Por um Fio

Não venhas devagar
com tanta pressa. Deixa
que derrame a fome
nos quintais e a maldição
suspeite do suave
aroma do delírio. Envia
o que te sobra
ou rouba
o mais pequeno passo
por um fio.

José Carlos Soares

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Paisagem

Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.
Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.
Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.
E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»
Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.
(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 15 de julho de 2011

A Tzu Chi: Entre as Flores

A luz no lago, de súbito, esconde-se atrás do muro,
Invadem o quarto os cheiros misturados de flores.
Na borda do biombo, o pó que a borboleta espalhou,
Na janela lacada, a mancha amarela da abelha.
Deixa esses papéis oficiais para os escriturários,
Há um criado para cada funcionário público honesto.
Vamos de cavalgada ouvir os poemas um do outro.
Que há de tão urgente nesses assuntos em que perdes o coração?

Li Shang Yin, trad. José Alberto Oliveira

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Os Objectos Principais

... poderemos,um dia,amar estas vitrinas
como quem ama uma ideia imperdoável, ou uma
breve hesitação dos condutores
a meio do percurso? quero dizer,
estaremos vivos para o desbotar destas
folhas de plástico que brilham
uma vez cada noite; e para
o assobio das nuvens
ao passar sobre a roupa?
ou, fechando a gaveta, engoliremos o receio
destes bolos roubados
na prateleira de água?
ou será este o dilema que nos propõem
as minuciosas escavações telefónicas?
são questões ignorantes, delas depende o rumo
dos grandes navios japoneses à entrada da doca.

António Franco Alexandre

Realizar

Realizo o sonho ao destino
ofertado. Retiro a irrealidade
e a contemplo em matéria
rio do segredo
descubro
avanço o tempo
à semeadura
e retorno em colheitas
a casa serve ao senhor
o estio ao crescimento da planta
depois do cultivo
sobre a terra
em inundações lavo a sombra
da irrealidade. Deposito
diante do homem
a sobra na satisfação
do todo.


Pedro Du Bois

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A Velhice Pede Desculpas

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.
Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.
Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.
Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.
Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Na margem das horas...

Preso ao Meu Destino
E preso ao meu destino eu principio
onde um pequeno sol por entre as árvores
perscruta o chão.
Ávido enfim de azul,
meu grito vive a ponte que o abismo
há muito conquistou.
O lume é ténue,
a chama é quase ausente e quase extinta.

António Salvado

Poesia

É a visita do tempo nos teus olhos,
é o beijo do mundo nas palavras
por onde passa o rio do teu nome;
é a secreta distância em que tocas
o princípio leve dos meus versos;
é o amor debruçado no silêncio
que te cerca e que te esconde:
como num bosque, lento, ouvimos
o coração de uma fonte não sei onde...

Vítor Matos e Sá

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Eu e Tu Dois!

Eu e Tu, num ser indispensável! Como
Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,
Aspiram a formar um todo, — em cada assomo
A nossa aspiração mais violenta se ateia...

Como a onda e o vento, a Lua e a noite, o orvalho
[e a selva
— O vento erguendo a vaga, o luar doirando a
[noite,
Ou o orvalho inundando as verduras da relva —
Cheio de ti, meu ser de eflúvios impregnou-te!
Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,
O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,
O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,
— Nós dois, de amor enchendo a noite do degredo,
Como partes dum todo, em amplexos supremos
Fundindo os corações no ardor que nos inflama,
Para sempre um ao outro, Eu e Tu, pertencemos,
Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama...

António Feijó

O mar é longe

O mar é longe,mas somos nós o vento; e a lembrança que tira,até ser ele, é doutro e mesmo,é ar da tua boca onde o silêncio pasce e a noite aceita. Donde estás,que névoa me perturba mais que não ver os olhos da manhã com que tu mesma a vês e te convém? Cabelos,dedos ,sal e a longa pele, onde se escondem a tua vida os dá; e é com mãos solenes,fugitivas, que te recolho viva e me concedo a hora em que as ondas se confundem e nada é necessário ao pé do mar. 

Pedro Tamen

A realidade é simples...

Aceitarás o amor como eu o encaro ?... ...Azul bem leve, um nimbo, suavemente Guarda-te a imagem, como um anteparo Contra estes móveis de banal presente. Tudo o que há de melhor e de mais raro Vive em teu corpo nu de adolescente, A perna assim jogada e o braço, o claro Olhar preso no meu, perdidamente. Não exijas mais nada. Não desejo Também mais nada, só te olhar, enquanto A realidade é simples, e isto apenas. Que grandeza... a evasão total do pejo Que nasce das imperfeições. O encanto Que nasce das adorações serenas. 

Mário de Andrade

O vento da vida

Tu eras também uma pequena folha que tremia no meu peito. O vento da vida pôs-te ali. A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu sangue, falaram pela minha boca, floresceram comigo. 

Pablo Neruda

Trajecto

Não passo de uma fecha disparada para o ar, que desce de novo, insegura do seu alvo 

Abou-t-Tayyib Ahmad ibn al-Husayn al-Mutanabbi

Soneto de amor

Não me peças palavras, nem baladas, Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio, Deixa cair as pálpebras pesadas, E entre os seios me apertes sem receio. Na tua boca sob a minha, ao meio, Nossas línguas se busquem, desvairadas... E que os meus flancos nus vibrem no enleio Das tuas pernas ágeis e delgadas. E em duas bocas uma língua..., - unidos, Nós trocaremos beijos e gemidos, Sentindo o nosso sangue misturar-se. Depois... - abre os teus olhos, minha amada! Enterra-os bem nos meus; não digas nada... Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce! 

José Régio

Angela Adonica

Hoje deitei-me junto a uma jovem pura como se na margem de um oceano branco, como se no centro de uma ardente estrela de lento espaço. Do seu olhar largamente verde a luz caía como uma água seca, em transparentes e profundos círculos de fresca força. Seu peito como um fogo de duas chamas ardia em duas regiões levantado, e num duplo rio chegava a seus pés, grandes e claros. Um clima de ouro madrugava apenas as diurnas longitudes do seu corpo enchendo-o de frutas estendidas e oculto fogo. 

Pablo Neruda

Um beijo

Um beijo em lábios é que se demora e tremem no abrir-se a dentes línguas tão penetrantes quanto línguas podem. Mais beijo é mais. É boca aberta hiante para de encher-se ao que se mova nela. É dentes se apertando delicados. É língua que na boca se agitando irá de um corpo inteiro descobrir o gosto e sobretudo o que se oculta em sombras e nos recantos em cabelos vive. É beijo tudo o que de lábios seja quanto de lábios se deseja. 

Jorge de Sena
A terra leva-nos por terra; mas tu, mar, levas-nos pelo céu. 

Juan Ramón Jiménez

Villa Dei Misteri

Tiro os óculos e recua o mundo: torno à mais árdua intimidade. Diónisos ou Penteus, antes do sangue pesa já a vinha sobre as colinas de Outubro. As bodas místicas do deus e da noviça, meu destino branco, minha face nocturna, não os preserva a ciência dos três livros, nem figurariam, por certo, na cinza dos restantes. Sei, entre névoas e azul, de uma biblioteca deserta, cujas estantes, por desnudas, não enjeitam a mais discreta sabedoria. Em sua transparência se inscrevem, como a luz à luz se sobrepõe. Trago na pele e nos olhos, sobre a língua e o palato, a memória escaldante de uma mulher. Devora-me um álcool lento e sedicioso. De todas as mortes sofridas, só esta temo e não desejo. 

Rui Knopfli

Nada feito, nada...

All or Nothing at All Tudo ou todo nada, pedra ou furo d'água, feito cada palavra, lança, dardo, ferida, em cheio nada. De nada em nada, o se-dizer do tudo, feito risco na água, onda, contorno, reflexo de nada. Nada feito nada, no poema não há termo meio, meio-amor, meia-palavra. Do sem sentido intenso se faz um tudo atento, feito a palavra em cantada, nada feito nada. 

Frederico Barbosa

Passear

Do fim do mundo - a rua – vejo traçados os limites do passeio na distância necessária à passagem do corpo - o transitar no espaço esvaziado – na concretização do traço: coberto em pedras na massa cimentada o passeio se oferece ao corpo: estanca a passagem. 

Pedro Du Bois

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Gravuras no Vento I

Gravura no vento. Pois é desacontecido o acontecimento. Em êxtase, vê-las... Uma a uma, todo o céu porejando estrelas. Pendentes de um fio, gotas de chuva — ou de sol — sob o sol do estio. Dentro do aranhol, de repente, frente a frente, uma aranha e o sol. Animal nasceu. Desanimalmente, agora, vive... num museu. Tarde longa e quente. Tange longe uma araponga seu grito fremente. Compensar sua ausência — evidente, este evidência! — só sua alegria. À pista vermelha de uma flor, vem uma rima e aflorissa: abelha. Incrível talento, o desse escultor das nuvens — genial! —, o vento. Ploc! Uma rã pula no silêncio da lagoa, e o silêncio ondula. Não metal de sinos. Vil-metal agora é a rima que canta o Natal. Nos cinzeiros jazem — antecipantes — as cinzas mortais dos fumantes. Seu corpo enriquece a terra. E a saudade é a flor que floresce. Ela — uma andorinha — vendo as outras que não estavam — nem uma — sozinha. Claro desafio: sete cores luminosas ante um céu sombrio. Fantasmagoria: uma borboleta preta em noite vazia. Interrogativo à beira de um charco, um velho coqueiro — pendido. Lenta, lentamente, um caleidoscópio gira. Gira-sol poente. Oca, ressequida, na carcassa da cigarra, em silêncio, a vida... 

Oldegar Vieira

Gravuras no Vento II

Cabelos ao vento, soltos, como vão revoltos — ah — seus pensamentos. Doze, compassadas, tangendo o silêncio e o tempo, doze badaladas... Fina e clara, a chuva, qual a janela que tem mais bela cortina? Nuvens e mais nuvens a passar, bem que me deite. Foi-se o ... meu luar. Uma flor no mato solitária, rubra, sangue no verde compacto. Não tem sul nem norte, nem oeste ou leste — é céu. Céu somente azul. Voltevolteiando no cristal do tanque, as carpas silenciosonhando... Sol da madrugada. Vai surgindo: dentro de uma teia iluminada! Uma borboleta. Nada mais, nem leve aragem. E a rosa é desfeita. Flor em que não vai a libélula pousar. Na espuma do mar. Por acaso a sua caminhada é a mesma, ou ela o acompanha, a lua? Ramagens crestadas reflorindo: borboletas nas cinzas, pousadas. Voz da cachoeira, ao viço da mata vai líquida poeira. Reflita: no espelho, aquele que o imita, quem será? Você? Lembradas jamais, as flores do morto vão mortas, muito mais. Tem cativo, o canto, mas o muda borboleta é livre, no entanto. Noite a dentro, um cão late, insone, a quem nem late, seu insone irmão. Ah, esse berreiro das cigarras no austero parque do mosteiro... Num céu claro e puro, um corvo paira sereno — feio, torvo, escuro. Cai a neve, e penso no quanto se deve ser puro como a neve. Que fazer com as mãos, não mais — não — senão guardar seu fugaz perfume? Ouracorrentado. Entre seios femininos, recrucificado. Espana a poeira de luz das estrelas, ou — no vento — é palmeira? Mudos edifícios permutando, permutando surdos malefícios. Fuçando em monturos, anjos andrajosos de presépios escuros. Chuva de verão, chuva de flores na chuva. Reflorindo, o chão. Os bois, pacientes. Mas as rodas, por que vão gemendo, gementes? Brancos, a igreja e o casario entre verdes, escorrendo ao rio. Na rua quieta, a flauta de um vagabundo — músicopoeta. Nas mãos de uma negra — noite-escrava —, uma urupemba peneirando estrelas.

Oldegar Vieira

Gravuras no Vento III

É flor esquecida, esta que resta no mármore, lembrando outra vida? Um fruto maduro, pendente, precisamente na linha do muro. Trapos do abandono — do espantalho — vai levando o vento do outono. Sob o anil do céu e ao sol — branco — um enxoval num varal, ao vento... Tê-las nas mãos quis, pois jamais alguém falara ao cego, de estrelas. Junquilhos envergam. Flores de neve pousando nas hastes, de leve. Na rua deserta — desperdício — eis que ela passa numa hora incerta. Flor de velho amor, expressiva? Só se for — morta — a sempre-viva. Serão. Ninguém fala. Somente os trilos dos grilos nos desvãos da sala. Grávida ela passa, e como vai cheia, cheia de Vida e de Graça. E o menino via: afinal, esse "natal"... não o merecia. Não mais florescentes, no lixo largadas, são flores — defloradas. Tatuagem móvel no pavimento: a ramagem ao luar e ao vento. Que Deus o proteja não pede. O que pede é pão na porta da igreja. Andorinhas: fusas na pauta dos fios, ou... ou semi-confusas? Pétalas levava — eram rosas — nas suas, outras mãos, nervosas. Sim, cantar mas sem — como a cigarra — pensar que a morte lhe vem. Musicalizado na folhagem, vai o vento, músico em viagem. Mudos nas estantes, são pacíficos soldados? Mudos mas prestantes. Quase um rei deposto. Não mais arde o sol da tarde. No espelho, o seu rosto. Auroralmagia! O canto claro dos galos clareando o dia. Lâmina de luz — a lagoa — estilhaçada sob a chuvarada. O mal da intriga sofre o mundo mas, ao monge, o silêncio abriga. Somente a ilumina — à imponente nave em sombras — uma lamparina. Brutos lenhadores mas bastante foi que vissem um ninho entre flores. Túmida e sangrenta, da escura folhagem surge lenta, lenta, a lua. Lavando e cantando, o riacho e as lavadeiras, cantando e lavando. Quebrado o relógio, fez-se eternidade o tempo desmecanizado. Por entre os telhados, mamoeiras, bananeiras — bem domesticados. Numa folha escrevo todo um poema: seu nome. Na folha de um trevo. Na concha rosada de uma pétala, uma pérola de orvalho, engastada. Bagunça, arruaça, nenhuma... a não ser dos pombos, os donos da praça. Sombra do seu corpo diz que sou, mas foge e faz sombra em minha vida. Seixo — ao léu rolado, rolarrolando... exilado peso-de-papel. Causa de desgosto, a mensagem vai no rosto como tatuagem. Na ramada nua pousado, um corvo, calado, vê nascendo a lua. Na clara do céu flutua — lua de fogo — a gema do sol. Acaso... um acaso? Ou proposital derrame de tintas no ocaso? Difuso e em surdina, o rumor de uma cascata dentro de uma neblina. Pétalas caídas ou borboletas dormidas que o vento desperta? Não lhe serve a prosa. Só em linguagem poética diga o nome "rosa". 

Oldegar Vieira

Na minha bagagem

Na minha bagagem cabem todas as estações que vivi Entre tantas outras coisas de duvidosa utilidade cabem ainda na minha bagagem as minhas memórias e os meus esquecimentos (sobretudo aqueles de que ainda me lembro) A minha bagagem parece-me muitas vezes enorme mas depois – quem sabe? - talvez haja por ali um problema de arrumação um excesso de cachecóis a falta de qualquer coisa Certo, certo, é que a sinto pequena, a minha bagagem quando me lembro de mim em menino e de como me pareciam tão grandes todos os adultos A minha bagagem não serve de exemplo senão a mim próprio e ao que de mim resta depois de tantas viagens feitas e de tantas outras que ficaram por fazer Tem pouco de memorável a minha bagagem mas cabem nela uma quantidade de coisas que não esqueci um par de sonhos uns ténis para jogar à bola os meus quixotes aqueles que amo para lá de qualquer meridiano Comparecem ainda na minha bagagem uns quantos amigos que considero luminosos mesmo quando não são brilhantes e que seriam sempre raros mesmo se fossem muitos O futuro da minha bagagem confunde-se com o meu. 

Rui Antunes

Tenho uma pedra

Tenho uma pedra no sapato 
E outra no coração 
A pedra do coração 
É a mais pesada 
Não sei se por ser maior 
Ou mais teimosa 
O médico disse-me 
Que tinha de aprender 
A atirar fora as pedras 
Como toda a gente 
Mas eu acho que as minhas estão coladas 
O médico não percebe nada de pedras 
Nem de corações 

Bibi Pereira

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Palavras Minhas

Palavras que disseste e já não dizes, palavras como um sol que me queimava, olhos loucos de um vento que soprava em olhos que eram meus, e mais felizes. Palavras que disseste e que diziam segredos que eram lentas madrugadas, promessas imperfeitas, murmuradas enquanto os nossos beijos permitiam. Palavras que dizias, sem sentido, sem as quereres, mas só porque eram elas que traziam a calma das estrelas à noite que assomava ao meu ouvido... Palavras que não dizes, nem são tuas, que morreram, que em ti já não existem — que são minhas, só minhas, pois persistem na memória que arrasto pelas ruas.

Pedro Tamen 

Auto-Retrato

A maneira de andar, como quem busca estrelas pelo chão. A cabeça a dar contra os muros. Em cada olho, o mundo como um punhal - cravado. O pensamento a abrir estradas numa várzea distante. Os ângulos do sonho formando orlas povoadas de fêmeas que a meu encontro viriam do outro lado, em lânguidas posturas. Diante do mar, a sede, a sede, de beber a vida em infinita viagem. As garras do gato ante paredes impostas. A impaciência de que chegue a manhã e a praia, a tarde e o amor. A maneira de andar como a fugir dos homens - e tê-los contra o peito. O pensamento a tirar pedras contra as vidraças que guardam os produtores frios de injustiças. O coração que bate ao som de fábulas. Que bate contra rochedos mortos numa praia de cinza onde palpita o primeiro amor. O coração eterno. O amor eterno que bate. A alegria! A alegria! Íntima, espantada de si mesma, gloriosa como palmas a se abrirem aos quatro ventos, a alegria de sentir-me vivo, a alegria de bicho do mato, criança, dominada, eterna. Ser eu. 

Affonso Félix de Sousa 

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Rua dos Fanqueiros


Vejo passar um avião cada minuto
Por cima da bandeira desfraldada
No limite mais à direita e absoluto
Rectângulo da cidade na esplanada
São Roque é a mais alta perspectiva
Uma igreja concebida para a batalha
De quem pela sua fé daria a sua vida
Na guerra onde se reza e se trabalha
À esquerda o pórtico da Margueira
Estaleiro onde se acolhem os navios
Tão doentes da viagem e da canseira
Na doca onde os cascos estão vazios
Da vida que atravessou os oceanos
Quando o combustível era a lentidão
Num instante passam cinquenta anos
O tempo de hoje é o tempo do avião

CASA ARRUMADA - Carlos Drummond de Andrade

A vida é muito mais do que isso...
"A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida
está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência
egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos
também a felicidade."

Casa arrumada é assim:

Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.

 
Carlos Drummond de Andrade

Um Pouco Mais de Nós

Podes dar uma centelha de lua,
um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que és e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silêncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma música só tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dádiva
ao húmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relógio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
é dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horário,
que a máxima recompensa de quem dá
é o júbilo de um gesto voluntário.

E, afinal, tudo isso quanto vale ?
Vale o nada que é tudo
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total
.

José Jorge Letria

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O amor é uma companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.

Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.

Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro

Acordo de noite subitamente

Acordo de noite subitamente.
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora,
O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez....

Fernando Pessoa

domingo, 19 de junho de 2011

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão.
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.
Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

José Gomes Ferreira

Algumas Coisas

A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio de aquele que fala se calará.
Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.
O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.

Manuel António Pina

Pode ser impressão minha

Sou como folhas de árvore — reparo.
Numerosas, presas ao ramo por pecíolos tenazes,
contudo complacentes com o ar que passa,
e por isso frívolas, mostrando
alternadamente as duas faces.
Assim múltiplo e trémulo sou eu.
Apenas um pouco menos perecível,
julgo. E a figueira a que pertenço
talvez um pouco mais durável
que as de verdade.
Mas isso pode ser impressão minha.

António Manuel Pires Cabral

Finais

Traz consigo
o que não tem: tempo
desejado
vende o momento
ao atraso e se satisfaz
em trocos, chega
ao fim despreparado
em visitas ocasionais
consigo a inútil
razão do horário:
o relógio repete
as horas.

Pedro Du Bois

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Sem outra Palavra para Mantimento

Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio
Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.

Daniel Faria

Silencio

Cuando tú te quedes muda,
cuando yo me quede ciego,
nos quedarán las manos
y el silencio.
Cuando tú te pongas vieja,
cuando yo me ponga viejo,
nos quedarán los labios
y el silencio.
Cuando tú te quedes muerta,
cuando yo me quede muerto,
tendrán que enterrarnos juntos
y en silencio;
y cuando tú resucites,
cuando yo viva de nuevo,
nos volveremos a amar
en silencio;
y cuando todo se acabe
por siempre en el universo,
será un silencio de amor
el silencio.

Andrés Eloy Blanco